Em 2014, Ursula K. Le Guin foi homenageada pela sua contribuição à literatura americana no National Book Award e o seu discurso ao aceitar o prêmio tem quer ser lido por qualquer um que queria ser escritor — ou que já seja um. Vivemos pressionados com a noção de que precisamos ter valor, e na sociedade capitalista, esse valor é sempre associado a quanto dinheiro você é capaz de movimentar. Quando temos a aspiração de criar, de fazer arte, essa pressão duplica.
A arte, hoje em dia, deixou de ser um valor em si. Os efeitos do esteticamente belo ou da provocação consciente, da articulação de ideias, formas e objetos para gerar uma determinada reação em quem se expõe à arte; tudo o que era visto como o verdadeiro impacto da criação artística da forma como ela se desenvolveu no Ocidente a partir do Renascimento passou ao segundo plano. O importante é: quanto vale, financeiramente, a arte que você produz? Como se enquadra nos possíveis mercados – o de consumo de massa, dos sucessos de venda, ou o de consumo de elite, onde se enquadram os premiados e os louvados pela crítica?
Em uma época em que a Ficção Científica dos EUA tinha pouquíssima simpatia por ideias e tendências de esquerda, Ursula K. Le Guin (1929-2018) colocou em suas obras pensamentos sobre sociedades igualitárias em termos de gênero e classe, combateu ideias colonialistas/imperialistas, e defendeu a necessidade da liberdade na criação artística. Vendeu bem, mas sem ser um best seller absoluto; recebeu prêmios, mas não tantos quanto deveria – tanto por sua postura política quanto por jamais abaixar a cabeça e renegar o que escrevia. Enquanto muitos escritores fogem do real, mas renegam escrever Ficção Científica ou Fantasia (como Margaret Atwood e Kazuo Ishiguro) por serem “gêneros menores”, Le Guin sempre defendeu a autonomia e a legitimidade da ficção especulativa como Arte – em todas as maiúsculas.
(Dois bons exemplos dessa postura da altura estão em obras lançadas pela Editora Morro Branco aqui no Brasil: a narrativa alegórica Aqueles que abandonam Ornelas e o romance Floresta é o nome do mundo)
Nesse discurso, Le Guin defende a necessidade de passarmos mais a valorizar o conteúdo do que escrevemos, além do seu potencial valor econômico. Seis anos antes da pandemia de Covid-19, ela já apontava que o mundo iria mudar para pior e que os escritores seriam cruciais para que pudessemos voltar a melhorar:
“Tempos difíceis estão por vir, quando desejaremos ouvir a voz de escritores que consigam ver alternativas ao que vivemos hoje e possam enxergar além desta nossa sociedade, tomada pelo medo e por sua tecnologia obsessiva, outras maneiras de existir, e que possam até imaginar possibilidades reais de esperança. Precisaremos de escritores que possam se lembrar da liberdade. Poetas, visionários — os realistas de uma realidade mais ampla.”
Essa realidade mais ampla é justamente aquela que só é vivida ao criarmos arte, ao realmente expressarmos os nossos íntimos em palavras. Ao irmos além do vivido e do tangível, tocamos em soluções e possibilidades que sem nosso esforço não existiram. Realidades que podem se tornar espelhos ou exemplos para a nossa própria e, assim, nos fazer transcender.
Pode parecer difícil em um sistema capitalista como o que vivemos, mesmo em uma das suas constantes crises, suplantar todas essas dificuldades. A própria autora nos lembra que o poder absoluto dos reis também parecia incontornável, até que as possibilidades começaram a surgir – muitas vezes, em palavras escritas para repensar a realidade vivida.
Tempos sombrios exigem coragem para gerarmos luz.
(Foto: Robin Marchant/Getty Images)
A transcrição e tradução do discurso foi feita por mim, com auxílio e revisão de Petê Rissati, Cláudia Fusco e Kátia Regina Souza, publicada no Medium em 31 de março de 2018.
“Agradeço a você, Neil (Gaiman), e aos responsáveis por este lindo prêmio. De coração, obrigada. Minha família, meu agente e editores sabem que estar aqui é tanto mérito deles quanto meu, e que este belo prêmio é tanto deles quanto meu. E me alegro em recebê-lo e compartilhá-lo com todos os escritores que foram excluídos da literatura por tanto tempo, meus colegas autores de fantasia e ficção científica — escritores da imaginação, que nos últimos cinquenta anos este belo prêmio ir parar na mão dos chamados ‘realistas’.
Acredito que tempos difíceis estão por vir, quando desejaremos ouvir a voz de escritores que consigam ver alternativas ao que vivemos hoje e possam enxergar além desta nossa sociedade, tomada pelo medo e por sua tecnologia obsessiva, outras maneiras de existir, e que possam até imaginar possibilidades reais de esperança. Precisaremos de escritores que possam se lembrar da liberdade. Poetas, visionários — os realistas de uma realidade mais ampla.
Neste momento, acredito que precisamos de escritores que saibam a diferença entre a produção de um bem de consumo e a prática artística. Desenvolver material escrito para se adequar a estratégias de venda e maximizar o lucro corporativo e a renda publicitária não é bem a mesma coisa que ser um editor ou autor de livros responsável.
Porém, vejo os departamentos de venda ganharem controle sobre o editorial; vejo minhas editoras em um pânico tolo de ignorância e ganância, cobrando de bibliotecas públicas seis ou sete vezes mais do que cobram dos consumidores. Acabamos de ver um aproveitador ameaçar uma editora por desobediência e escritores ameaçados por uma fatwa corporativa, e vejo muitos de nós, produtores que escrevem os livros e fazem os livros, aceitando isso. Deixando esses exploradores nos vender como desodorantes e nos dizer o que publicar e o que escrever.
Livros, vocês sabem, não são apenas mercadorias. A motivação pelo lucro está frequentemente em conflito com os objetivos da arte. Vivemos no capitalismo. O seu poder parece ser inevitável. Assim era o poder divino dos reis. Os seres humanos podem resistir a qualquer poder humano e mudá-lo. A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte, e muitas vezes mais na nossa arte — a arte das palavras.
Tive uma carreira longa, uma boa carreira. Em boa companhia. Agora, aqui, no final dela, realmente não quero assistir à literatura americana ser apunhalada pelas costas. Nós que vivemos da escrita e da vida editorial queremos — e devemos exigir — a nossa parte dos resultados. Mas o nome da nossa bela recompensa não é lucro. O seu nome é liberdade.
Obrigada.”