— Eu tinha esquecido como essa porra de prédio é feia.

— “Joia da arquitetura modernista brasileira”.

— Feio pra caralho.

— Você beija a sua mãe com essa boca?

— Não, beijo a sua!

Ele me abraça apertado.

— Ai, irmã, sua louca, eu estava com saudades! — Eu me afasto e retribuo o sorriso gigantesco do Gui, parando de sacanear o Palácio Gustavo Capanema.

— Eu também. Você cresceu, hein, feioso? — Ele realmente não parece em nada com o menino de quatro anos atrás, desajeitado, todo braços compridos e orelha de abano. Está malhado, bronzeado e feliz.

— Cresci e apareci! E você, hein? Quatro anos em Paris e finalmente aprendeu a se vestir.

Ele me faz rodopiar, erguendo a barra do vestido preto rodado.

— E esse decotão? Colocou peito?

Dou um tapa no ombro dele.

— Olha o respeito, moleque, que eu sou tua irmã mais velha. Não, não coloquei; o vestido é que valoriza.

Ele sorri e volta a me olhar com orgulho.

— Você está linda.

E estou mesmo. Quando sai do Brasil, estava arrasada. Meu noivo tinha me trocado por uma mulher 20 kgmais magra, que se vestia como se posasse para uma revista. Eu me culpei, me achei horrorosa e sem valor. Recém-formada, sem emprego, precisava decidir se mergulhava de vez no mundo da magia ou se tentava a vida normal. Uma amiga me chamou para uma especialização em magia antiga na França e eu fui. Quatro anos depois, sou uma das maiores investigadores místicas da Europa, especialista em paganismo europeu clássico e funcionária da ESPIGA (Embaixada Secreta Paranormal Intuitiva Gnóstica e Arcana) do Brasil na França. Nada mal.

Achei que nunca mais voltaria ao Brasil. Estava só esperando Gui se formar para levar ele e mamãe para a França, para morarem comigo. Porém, meu antigo chefe pediu ajuda e aqui estou, com um corte de cabelo abaixo dos ombros que valoriza meu tom castanho dourado, sobrancelhas perfeitas e unhas impecáveis (feitas por mim mesma, pois na Europa, salão de beleza é luxo), cinco quilos a mais e com senso de estilo e autoconfiança de sobra, que se refletem no vestido até os joelhos e decote generoso em triângulo, valorizando a pele mais branca do que quando saí do Brasil; e os seios estão do mesmo jeito, só mais bem tratados. Então, mesmo prestes a entrar no prédio onde trabalhei como estagiária e onde meu ex-noivo ainda trabalha, sinto-me muito bem. Marcelo Lorentinni Machado não me importa mais. Ajeito o pingente com o símbolo das três luas e passo a mão no cabelo.

— Obrigada! Resolvi caprichar!

— Vai pisar naquele canalha? — Os olhos de Gui brilham. Nunca perdoou meu noivo, principalmente por eu ter saído do país. No começo, relutei em contar o que tinha acontecido, mas precisei explicar a ele e a mamãe a pressa em sair do país.

— E precisa, Gui? Ele continua aqui, no mesmo emprego, fazendo a mesma coisa de quatro anos atrás. Olha para mim! — Aponto o meu corpo, a roupa bem desenhada para um corpo como o meu, e rodo de novo. – A minha presença é um pisão.

Olho para o relógio.

— Bem, vamos que a reunião começa em 15 minutos.

Subimos juntos no elevador. Gui é estagiário no MERDA, o escritório de registros de direitos arcanos, e aproveitou a oportunidade de chegar mais cedo e me ver antes. Cheguei hoje de manhã e vim direto do aeroporto para cá. Minha mala ficou na recepção e quando eu sair daqui vou para o apartamento que aluguei por dois meses. Na praia de Copacabana. Quem diria que a suburbana gorda de Lins de Vasconcelos iria morar, mesmo que por temporada, em um apê de luxo na praia mais famosa do Brasil. Nada mal. De noite, vou jantar com minha mãe e Gui, mas quero independência. Mamãe não sabe da nossa ligação com o mundo místico e prefiro assim.

Saltamos no 16º andar, onde funciona a coordenação regional da SACO, a secretaria arcana do governo brasileiro, e o MERDA. Aceno para a Neli, que trabalha na recepção, e Gui me dá um abraço.

— Te vejo depois? — Eu aceno com a cabeça, distraída e olhando ao redor. O 16º andar, apesar de ser da SACO, segue o padrão do Capanema. Pé direito impossivelmente alto, divisórias de madeira maciça escura, janelas com as persianas mais complicadas da história mundial. Sinto falta. Juro. Não muita, mas sinto. — Você vai jantar com a gente, né?

— Sim! Se der, a gente almoça? — Ele já está com a mão na maçaneta da porta da recepção.

— Cara… — Olha ao redor e abaixa a voz. — Não sei se vai dar. Tem chefe novo, o negócio anda estranho. Mais tarde a gente conversa? Em casa?

Digo que sim e o beijo na bochecha. É absurdo precisar ficar na ponta dos pés para isso. Eu antes precisava me abaixar para beijá-lo na testa. Sigo pelo corredor até a última porta. Entro sem bater e dou de cara com quem? Meu ex-noivo, porque afinal a minha vida é uma sitcom escrita por um deus com um senso de humor esquisito.

— Nara?

— Oi, Marcelo.

Eu sorrio, vingativa. Ele abre a boca. Fecha. Abre. Fecha. Abre e finalmente consegue falar alguma coisa.

— Nossa, você está… Uau. Quero dizer, tudo bem? Como vai?

A vontade é dizer que estou ótima, ao contrário dele. Está magro demais, a pele branca em um tom quase azedo, a blusa amassada e com algumas manchas, a barba mal feita e cheia de falhas. Os anos não foram generosos. Ainda bem que não sou obrigada a ter empatia.

— Cansada da viagem, né? Você sabe como são esses voos transcontinentais. — Não, ele não sabe. Nunca saiu do Brasil. Ah, como é doce a vingança. O rosto pálido fica quase verde de inveja— E foi tão de repente, o Setor Arcano do Itamaraty me chamou às pressas… O Geraldo já chegou?

— Já sim, está na sala dele… Você… seria legal tomar um café e colocar a conversa em dia.

— Desculpe, Marcelo, estou aqui a trabalho. Mas foi bom te ver.

Aceno com os dedos e preciso me conter para não sair pulando. Só dou aquela rebolada sucinta que sei que vai mover a saia de um jeito particularmente sedutor e sorrio para mim mesma. Escuto a voz de Marcelo falando alguma coisa, mas não me viro.

A porta de Geraldo está entreaberta e eu coloco a cabeça para dentro.

— Ei, Chefe?

Ele ergue a mão e pede para esperar, sinal de que não é conversa para os meus ouvidos. Reviro os olhos, volto para o corredor… e quase esbarro com alguém que vinha atrás de mim.

— Oh, desculpe! — O meu constrangimento é maior porque, se a pessoa estava atrás de mim, me viu rebolando, e evito encontrar o rosto, mantendo os olhos baixos.

— Tudo bem, senhora. — A voz é grave, musical e profunda. A curiosidade me faz levantar os olhos e eu não me decepciono. O homem a minha frente tem pele marrom clara e um rosto sério, bem barbeado. As sobrancelhas grossas são delineadas e escuras, o cabelo em um corte quase militar é preto. Os olhos castanhos me encaram com desconfiança.

Ele ajeita a gola do blazer e reparo em três coisas. Primeiro, que tem mãos grandes, de dedos grossos, o que me desperta pensamentos bastante inapropriados. Depois, os ombros largos e bem formados, e talvez os braços acompanhem. Sou doida por braços…

E claro, para completar, fica bem óbvia a ausência de aliança nas mãos.

Eu me seguro e não sacudo fisicamente a cabeça, mas me dou um chacoalhão mental. Ele provavelmente estará na mesma reunião que eu, ou seja, vai estar ligado à investigação. Não devo alimentar nada.

— Pode entrar, bonitona!

— Oi, chefe! — Entro, sorrindo com o apelido carinhoso. Geraldo foi amigo do meu pai por anos, até o velho decidir que ia para a China estudar a magia milenar, deixando para trás filhos e esposa. Ali, Geraldo resolveu que iria ser nosso amigo e virou praticamente o nosso pai, ajudando minha mãe e guiando, a mim e ao Gui, na vida secreta de quem tem poderes arcanos.

Ele levanta, me abraça e me dá dois beijos estalados, um em cada bochecha.

— Quem me dera ser chefe da investigadora mais famosa da SEILA, pô! Até parece! Mas você está ainda mais bonitona!

Geraldo sempre, sempre me disse o quanto eu era bonita, sem os ‘mas’, sem os condicionantes, sem colocar meu peso como algo que diminuía a minha beleza. Pelo contrário, dizia que a beleza era tanta que um corpo magro não aguentaria. Pena que demorei 28 anos para escutá-lo. Ele mesmo era gordo — mas não se cuidava e vivia tendo problemas de pressão alta, deixando o rosto marrom com manchas avermelhadas constantes nas bochechas. Quando trabalhei para ele, era chefe do MERDA e chamado de Big G pelos colegas da repartição.

— Opa, o outro convidado já chegou. Senhor Benjamin Valdez, bem-vindo a SACO. Sou o coordenador regional no Rio de Janeiro, Geraldo Carreras. Esta é a Nara Villar, investigadora sênior no nosso serviço de investigação internacional. Ela foi chamada da França especialmente para nos ajudar e é de minha inteira confiança.

— Prazer em conhecê-los. — Ele aperta a mão de Geraldo com desenvoltura e rapidez, mas ao apertar a minha, demora um pouco mais. Tá, pode ser impressão, né? A mão dele aperta firme, mas com delicadeza, e sei lá porque, sinto que estou prestes a ficar vermelha.

Geraldo indica duas poltronas na frente da mesa dela para que nos sentemos.

— Narinha, você está fora do país faz um tempo, então não o conhece. Ben Valdez é um dos maiores sucessos da música gospel atual, é missionário da Igreja Cristã Paz do Senhor e representa os pentecostais no conselho…

Ah, que decepção. Seria melhor se fosse casado. Um homem daquele, com cara de guerreiro pagão, cantor gospel? Desperdício puro e simples. Só olho para o cantor e sorrio, tendo como resposta a mesma expressão fechada de sempre. Ele não ganha pontos por simpatia, sorte ser bonitão.

— Senhor Valdez, poderia explicar por que o conselho pediu que nos procurasse? — Geraldo tira os óculos e enxuga a cara com um lenço, sinal de que vai escutar com atenção. Eu me acomodo na cadeira.

— Claro. — Ele chega um pouco mais para a frente na poltrona ajeitando o vinco da calça. Evito pensar em qual a necessidade que teria de arrumar a calça para sentar melhor. — Para começar, como iremos trabalhar juntos, acho que seria melhor se nos tratássemos de forma direta. Ou seja, pode me chamar de Ben e acho que não haveria problemas se eu os chamasse pelos nomes ao invés de senhor Carreras ou senhora Villar.

— Senhorita — corrijo, sem muito motivo. Ele quase sorri, o que me dá uma fisgada estranha.

— Claro. Geraldo, Nara… tudo bem?

Amigo, com essa voz, você pode me chamar até de trocinho que eu atendo.

— Acho que devemos começar deixando tudo às claras. Não concordo com esse caminho que o bispo resolveu seguir. Para mim, pedir ajuda a vocês é uma humilhação. Vocês não deveriam estar metidos em problemas da nossa igreja.

OK, bonito, gostoso e bilíngue: fala português e muita bosta. Mas Geraldo se mete.

— Então, Benjamin, o negócio é o seguinte: você não tem o que gostar. A ordem veio de CIMA, do Conselho Inter-religioso Místico e Arcano, e você tem que obedecer. Pronto. O seu bispo pediu ajuda ao Conselho, nós decidimos ajudar e que a melhor forma seria chamando Nara, que é especialista no assunto.

— Sou? — Eu tinha amado ver a cara de pato do cantor, mas estava na hora de começar a trabalhar. Cruzo as pernas e endireito as costas. Os olhos do moço se desviam ligeiramente para o meu decote, o que foi totalmente a minha intenção, mas ele se dá conta e desvia o olhar. – Bem, sou especialista em várias coisas, então talvez fosse melhor ser mais específico.

Geraldo ri, o cantor gospel fecha a cara. Eu sorrio de lado, do jeito mais cínico que posso.

— Então, senhorita Vilar, não faço ideia da sua especialização, mas espero que a tenham ensinado a lidar com isso.

Ele tira um envelope do blazer e estende para mim. Pego, abro e entendo o que ele quis dizer. Obviamente, ele acha que eu vou ficar chocada, dar um gritinho ou coisa assim. As fotos são mesmo chocantes, crianças — parecem ser duas meninas e dois meninos — mutiladas, expostas em um padrão ritualístico que não consigo identificar de cara. Muito sangue, tripas… é quase como se fosse feito um cenário para chocar, mais do que um ritual ou um sacrifício. Engulo em seco, disposta a não aceitar a provocação e agir como se aquilo não tivesse doído.

— Sim, é essa exatamente a minha linha de atuação, senhor Valdez. — Inclino-me para ele, dando uma ampla panorâmica do meu decote. Devolvo o pacote com as fotos, nossas mãos se roçam e dou o sorriso mais perverso que consigo. Se ele acha que vai me fazer desistir da investigação está enganado. — Tenho especialização em magia antiga, mas depois disso fui estudar e atuar na resolução de assassinatos rituais e pseudorrituais. Há algum contexto ou vocês só têm as fotos?

Ah, ele fica muito apetitoso quando fica bravo. E está visivelmente puto da vida comigo, se a veia pulsando no pescoço é alguma indicação. Vai ser divertido ficar provocando — pelo menos vai me distrair do peso dessa investigação. Tudo que envolve crianças é mais doloroso, mais triste.

— Não sei se é contexto o bastante para você, senhorita. — Eu me ajeito de novo na poltrona, percebendo pela voz dele que o assunto tem um peso imenso. — São quatro crianças, filhas de pastores e missionários da minha igreja. Sumiram depois da aula e foram encontrados mortos dois a três dias depois.

— Juntos? — começo a tentar juntar as peças. Preciso investigar os pais, os ambientes, as igrejas. Tudo pode estar ligado.

— Não, separados. Isso vem acontecendo há três meses já… — Ele está tenso, o olhar fixo em um ponto atrás do Big G.

— E o que levou vocês a só procurarem o conselho agora? — Três meses é muito tempo, se eles procuraram a polícia, deveriam ter vindo direto para o CIMA.

— Os três primeiros aconteceram em áreas de milícia…

Geraldo interrompe.

— Na verdade, os três primeiros crimes foram contra filhos de pastores envolvidos com a milícia. Aí, os amiguinhos resolveram…

Ele se levanta, bem nervoso.

— Do que você está falando?

— Seu chefe mandou o dossiê completo, amiguinho. Toma, Nara. — Ele joga um envelope bem grosso para mim. Pego e olho o tal Benjamin que está fumegando de raiva. Eu olho com calma, folheando o dossiê com movimentos beeem exagerados. As fotos são realmente muito gráficas, mas o mais indecente é a investigação por trás dos pais das crianças. Estão envolvidos em todo o tipo de maracutaia, desde invasão de propriedade a jogo clandestino, passando por tráfico de drogas e prostituição de menores.

Menos no crime mais recente. O menino era filho de um pastor famoso, um cara conhecido pela sua integridade até entre quem não gosta de evangélicos.

— Eles pararam de ir atrás dos pastores bandidos e foram atrás de um dos poucos honestos.

Ele me olha ainda mais bravo e eu só ergo o canto da boca. Vai ser divertido.

— Ele era meu sobrinho.

Merda.

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